quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Lagos Andinos e Santiago do Chile

Segredos da América do Sul


Ruth de Aquino


Onde você gostaria de estar agora? Num deserto de sal, com vapores saindo do solo? Ou navegando num lago verde-esmeralda? Talvez esquiando, Experimentando vinhos, mergulhando no mar do Caribe ou passeando por uma cidade com ares de Europa. Viaje por estas páginas e descubra: tudo isso está mais perto do que você imagina, no nosso próprio continente


Água e sal


Ao norte, o deserto do Atacama. Ao sul, os lagos andinos. De cima a baixo, um retrato de um Chile que tem muito a ser descoberto


Um Chile temperado por extremos: deserto de sal e florestas de araucária, sol e chuva, crateras e vulcões, neve e surfe, rafting e escaladas, termas fumegantes e lagos glaciais, temperatura de zero a 40 graus no mesmo dia. Foi o coquetel escolhido para férias de duas semanas nesse país vizinho de geografia radical: são 4 300 quilômetros de norte a sul, e apenas 200 quilômetros de largura. Era um desafio conciliar agenda e expectativas de um trio de turistas de 50, 23 e 17 anos – eu e meus filhos. No fim, os mais velhos rejuvenescem, ou esquecem a idade, porque energia é bagagem indispensável, junto com boa dose de flexibilidade.


O sucesso de uma viagem ao Chile depende bastante do planejamento. As distâncias são imensas, o clima varia muito com a estação e a latitude. O peso chileno está valorizado, o país ficou caro também por estar na moda como pólo de ecoturismo. Com mais de 2 mil vulcões na Cordilheira dos Andes, e generoso em atrações para adolescentes, avós ou casais em lua-de-mel, o Chile impõe um primeiro cuidado: não tentar conhecer tudo, porque é missão impossível. Se tiver no máximo duas semanas, escolha duas regiões como destino, e duas noites em Santiago, na chegada e na saída. E, se quiser ir ao norte e ao sul, nem pense em fazer tudo de carro em pouco tempo. Esse é o erro que provoca mais arrependimento. Faça percursos internos de avião e alugue carro localmente para explorar cada região em que estiver. Carro 4x4 é indispensável. Optamos pelo contraste direto, uma espécie de Chile 360 graus: o deserto, ao norte, e os Lagos Andinos, 800 quilômetros ao sul de Santiago. Deixaríamos a Ilha de Chiloé e o sul da Patagônia para outra vez.


Atacama


O Deserto do Atacama fica a duas horas e meia de avião no norte de Santiago, e mais uma hora de carro (vans dos hotéis) do aeroporto de Calama até o povoado de San Pedro, conhecido como El Oasis, a 2 500 metros de altura e bem perto da Bolívia. Com herança cultural forte dos incas e dos espanhóis, o Deserto do Atacama é uma revelação para os sentidos, uma prova para o corpo. Desnorteia pela beleza crua, sem concessões. Turistas místicos contam ter tido ali visões do passado ou do futuro. Agnósticos atribuem essas experiências sensoriais à altitude de até 4 300 metros que pressiona a cabeça. E à secura que faz arder o nariz e os olhos. É poderosa a sensação de ser catapultado a uma paisagem estranha, com formações vulcânicas, o sal duro como rocha que cobre o deserto, o vapor dos gêiseres que embaça a vista, lagunas altiplânicas, cânions com cactos gigantes e piscinas termais. Diz-se que o Atacama é a região mais inóspita e seca do mundo. De animais, fora os cães que vagueiam por San Pedro, vemos lhamas e, correndo da ameaça real de extinção, uma ou outra vicunha (espécie de alpaca).


Crente ou não, qualquer um pode usar as férias para um encontro consigo mesmo. E o deserto talvez seja uma boa iniciação, porque não há tempo nem espaço para digressões ou vaidades. Ninguém se olha no espelho. O arsenal de cantil, frutas, hidratante, filtro solar, colírio, chapéu, meia, bota para caminhada e casaco corta-vento só reforça o instinto de preservação num ambiente hostil à vida.


Nos vales da Morte e da Lua, a imensidão e o vento forte tiram qualquer um do prumo e tornam humilde a mais arrogante das criaturas. Promete-se o pôr-de-sol mais belo do mundo. Não é para quem já viu o sol se pondo em cima do mar. O que deslumbra é a paisagem de recortes abruptos, montanhas, dunas, crateras e abismos, como se fosse uma montanha-russa natural, resultado de erosões milenares. O maior espetáculo ali parece ser o da lua cheia. Não demos sorte, não coincidiu com o nosso período de viagem.


Esse primeiro impacto é o aperitivo para excursões como as lagunas altiplânicas de Miscanti e Meñiques, cercadas de vulcões de até 5 600 metros. Depois de uma hora de estrada ruim, com solavancos, terra vermelha e arbustos com espinhos, chamados de almofadas de sogra, as lagunas azuis surgem, após uma lombada, como miragem. Chá de coca é essencial para respirar melhor; ou folhas de coca para mascar, à venda no mercado. Não dão barato, mas reduzem a pressão e abrem os pulmões. Há quem tome aspirina diariamente para não sentir dor de cabeça. Cuidado com álcool, não combina com altitude.


O salar de Atacama, deserto de sal com a reserva de flamingos vermelhos, tem um problema: turistas demais e flamingos de menos. Mas o horizonte branco infinito de sal de pedra, que fura qualquer sapato que não seja bota, sobre um lago subterrâneo de 1 400 metros de profundidade, é impressionante. Bom incluir no mesmo dia a Laguna Sejar, que, pela alta concentração de sal, nos obriga a boiar. É preciso levar sandália de borracha, presa nos tornozelos, para não se cortar nas pedras da borda, e galões de água para remover o sal entranhado no corpo. Não há nenhum chuveiro nem toalete como no israelense Mar Morto, de propriedades parecidas.


Se você for desbravador e independente, evite hotéis que incluem os passeios, obrigatoriamente, no pacote. Assim, é possível personalizar seu roteiro ou ir só com o guia. É uma região ideal para trekking em cânions – uma caminhada de três horas e meia nos leva de Guatín às Termas de Puritama, com águas a 33 graus. É melhor a piscina selvagem e isolada nas rochas do vale. As piscinas no alto de Puritama, urbanizadas pelo Hotel Explora, com toaletes e espaços de piquenique, atraem aos domingos caravanas de famílias atacamenhas.


Uma atração noturna que exige agasalho, gorro, luvas, mesmo no verão, é a observação dos astros num planetário ao ar livre. No jardim de sua casa, o astrônomo francês Alain Maury, que já trabalhou para observatórios internacionais, plantou cinco telescópios. Explica os princípios da formação do universo e ensina turistas a olhar estrelas, galáxias, nebulosas. São tours de três horas, em espanhol, inglês ou francês. A estrela da noite é a visão de Saturno e seus anéis. O passeio inclui, de madrugada, um chocolate quente na casa de Maury.


Os mais atléticos exploram a periferia de San Pedro de Atacama de bicicleta ou a cavalo, mas nenhuma excursão é recomendável sem um guia ou amigo que conheça bem o deserto. Não há placas, não se esqueça. Os atletas da noite lotam os bares, o pisco sour (a caipirinha chilena) esquenta as baladas, mas a lei manda qualquer bar fechar à 1h, senão é multado. O drible são as festinhas particulares: papéis em cópias xerox ou impressos no cibercafé da rua são distribuídos nos bares, como convites.


É aconselhável deixar os Gêiseres de El Tatio (espécie de estação geotermal, com água expelida a até 10 metros por dezenas de crateras) para o último dia, quando a altura já não causa enjôo. As instruções são dormir cedo e não beber na véspera. Acorda-se às 4h da manhã para viajar hora e meia, às vezes enfrentar tempestades de granizo (fevereiro é o inverno altiplânico) e chegar antes do amanhecer. A temperatura cai muito, não raro a zero grau, e os chafarizes de vapor e água em ebulição parecem um extrato de sonho.


Cinco dias de deserto e estamos de volta a Santiago, aturdidos como se tivéssemos ido a outro planeta. A segunda metade da viagem seria tranqüila, com o verde e a umidade a que nós estamos acostumados.


Lagos Andinos


Partimos cedo para Puerto Montt, de avião, pela Lan Chile – no aeroporto, compramos um mapa detalhado da Região dos Lagos, mostrando a qualidade das estradas e das atrações. Essencial. Nossos cinco dias ali teriam dois focos geográficos: Pucón, com o lago, parque e vulcão batizados com o mesmo nome, Villarrica; e Puerto Octay (para fugir da agitada Puerto Montt), com o Lago Llanquihue e o Vulcão Osorno. Não há como se livrar dos vulcões do Chile, vários ainda ativos. A vontade de escalar um deles persegue a maioria dos turistas. Chegamos com o céu totalmente nublado. E isso acontece muito. Segundo o piloto de um barco que cruza os Lagos Andinos, ali existem apenas duas estações: “De inverno e de trem”.


Pegamos um Grand Vitara 4x4 no aeroporto de Puerto Montt, alugado pela internet, e rumamos direto ao Hotel Centinela, em Puerto Octay. É uma construção de quase 100 anos, numa península no Lago Llanquihue, com chalés de frente para o Vulcão Osorno, lareira e restaurante com vista para o lago. Uma bruma impedia a vista, mas a umidade era bem-vinda depois do deserto. Como a manhã seguinte ainda estava cinzenta, rumamos para Pucón. O céu se abriu ao longo dos 310 quilômetros de excelente estrada.


Pucón esbanja garotada de sandália e roupa de praia em bares vegetarianos, bebendo sucos de frutas – é um balneário invadido por agências de esporte radical. A boa da noite é tomar banho sob as estrelas nas Termas de Los Pozones, perto de Huife e do Parque Nacional de Huerquehue, a 30 quilômetros (ou uma hora) de carro com tração nas quatro rodas. São seis piscinas, breu iluminado por fracos lampiões, com guardião na porta cobrando a entrada, cabines de madeira servindo de vestiários, água chegando a 38 graus. É programa para ir com sua polola (“namorada”, na gíria da rapaziada).


Outras atrações imperdíveis: rafting no Rio Trancura (o Alto Trancura é para quem gosta de emoções fortes, e o Baixo, para crianças e adultos comedidos). Fomos ao Alto Trancura e havia seis brasileiros no grupo. Decidimos ir todos num bote, acompanhados por um instrutor com braços de Rambo. Após a corredeira que se chama apropriadamente “O Último Sorriso”, o bote capotou, na brincadeira de balançar de encontro a uma pedra. Acidente imprevisto e raro, segundo o instrutor. Preste atenção a todas as instruções dele, e ajuste bem capacete, roupa e botas. Sem saber como nos comportar diante de um imprevisto como esse, não teríamos saído ilesos.


Programamos escalar o Vulcão Villarrica, que domina Pucón: depois de ver alguns septuagenários (ok, canadenses e escandinavos) subindo, o medo some por instantes. Um teleférico leva a uma plataforma, a 1 200 metros, e dali sobe-se até a cratera, a 2 840 metros, sem olhar para trás. No dia marcado, havia muito vento e a escalada foi cancelada. Decidimos voar. O piloto e pára-quedista Peter Vermehren, da agência Skydive, faz vôos turísticos num Cessna. É bem caro (130 dólares por pessoa – o avião tem lotação de quatro, incluindo o piloto), mas, para quem nunca viu lava borbulhante de perto, é daquelas experiências que brotam como flashes na memória.


Ainda em Pucón, vale ir até Ojos de Caburga, cachoeiras de cor verde-esmeralda. Espetacular, mágico, mas a água é congelante. Apenas os intrépidos mergulham. Desfrute a paisagem, esqueça a privacidade. São muitas famílias de chilenos, observando e tirando fotos.


Voltamos para Puerto Octay, tínhamos só dois dias e demos sorte desta vez com o tempo. Do Hotel Centinela agora, se avistava claramente o Vulcão Osorno. Aproveitamos o aconchego do chalé, o vinho da uva carmenère, o saboroso cebiche de salmão marinado e as tortas alemãs. Esse hotel foi construído em 1913 como casa de veraneio de três famílias de Santiago. Conta a lenda que, depois, virou ponto de encontros e festanças que duravam dias e noites. Homens casados deixavam as mulheres em Santiago e mandavam vir da Europa francesas para diversões de todo tipo.


Na região do Lago Llanquihue, duas atrações são prioridades: uma é a visita aos Saltos de Petrohué, onde se nada em águas glaciais e douradas por causa das pedras, com a vista do vulcão. O outro passeio, caro e bem turístico, é a travessia do Lago de Todos los Santos, verde por causa dos minerais na água.


De Puerto Octay a Petrohué, são 80 quilômetros, mas a estradinha é estreita, péssima e linda: com prudência, o percurso leva duas horas. E, mesmo assim, furamos um pneu. Pelo outro lado do lago, de Puerto Montt a Petrohué, a estrada é boa. A barca da empresa Andina del Sur sai lotada em seus dois andares, às 11h da manhã, em direção a Peulla. A vista dos vulcões Osorno e Pontiagudo nos acompanha, e em certo momento estamos a 6 quilômetros da Argentina – o Monte Tronador é a fronteira. Em Peulla, há uma excursão até o Rio Negro, de lancha, mas por mais revigorante que seja o mergulho no meio da floresta não vale o preço extorsivo cobrado. Almoço em Peulla é péssimo, arapuca para turista; melhor é levar lanche e aproveitar o tempo em terra para uma trilha de meia hora e banho na Cascata Véu de Noiva. Programa gratuito e recompensador.


Era hora de voltar para Santiago e dizer adiós, mas, no caso do Chile, como qualquer turista que se preze, melhor despedir-se com um hasta luego.

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